terça-feira, 19 de novembro de 2013

A Visão de um Adepto: A Noite Escura da Alma

Por: Gregorio Lucio

Gostaria, nesta nova publicação, de tratar de um assunto pouco discutido ou analisado em nosso meio. Porque envolta em questões que fogem ao contexto dos discursos comuns e, em geral, superficiais, presentes nas comunidades de terreiro, e vinculando-se mais à profundas bases psicológicas da experiência espiritual ao longo da vida religiosa, realmente, torna-se difícil abordar a temática da então chamada “Noite da Alma” ou, “Noite Escura da Alma”, conforme havia sido designada por São João da Cruz, e utilizada pela Teologia Cristã.

A Noite da Alma, ou Noite Escura da Alma, é uma simbologia que se refere a um estado psicológico e espiritual, no qual se apresenta um paradoxo (profunda contradição) interior, pois, embora seja uma experiência iluminativa, esta se caracteriza pela presença de um obscurecimento da alma, dos sentimentos e do sentido religioso, provocando sofrimento.

Talvez pelo fato de que esta experiência sempre o fora relatada entre profundos místicos e pessoas cujas vidas foram dedicadas integralmente à prática religiosa (Madre Tereza de Calcutá teria vivido tal experiência por mais de 40 anos), acabou-se por se desconsiderar que tal experiência é presente também nas pessoas de vida “comum”, principalmente se estas também dispõem, em sua vivência cotidiana, da prática religiosa e se colocam à busca de sentir e vivenciar o Sagrado em sua vida.

Fato é que todo aquele que se vincula, com sinceridade, à vivência religiosa, mesmo não sendo um profundo místico, irá passar, ou já passou, por essa experiência de integração com determinados aspectos desconhecidos (sombrios, noturnos) do seu mundo interior. Mesmo aqueles que não dispõem de uma vida religiosa passam por experiências semelhantes, embora noutro sentido, no entanto, ambas as experiências conduzem o ser humano para um processo de amadurecimento interior e reordenação de sentidos psicológicos para a vida.

Não vou me deter às características da Noite da Alma conforme ela se apresenta, especificamente, na vivência dos místicos religiosos, contudo, irei trazer determinados pontos que se ligam a esta experiência num nível mais comum e próximo a cada um de nós. 

Então, a Noite Escura (da alma) pode surgir na vida do adepto como um estado de perda de sentido psicológico da sua vida religiosa. Um sentimento profundo e inquietante de ausência em relação a Deus e ao Sagrado o invadem, dando margem ao surgimento de várias dúvidas e questionamentos de variadas ordens (doutrinários, místicos, éticos, sociais, subjetivos, etc) que emergem à consciência, ocasionando um sentimento de inadequação, de “estar fora de lugar”. Os atos devocionais, de maneira geral, a prece, a presença nos ritos e, mais particularmente ao nosso meio, o contato espiritual com os Guias e Mentores, embora sempre positivo e saudável, é também caracterizado pela presença de um sentido de penumbra, de obscuridade e de distanciamento psicológico da experiência, tornando-os sofrivelmente insatisfatórios.

O sentido do sofrer, nesta experiência subjetiva do adepto, surge pelo sentimento de desconexão com a Divindade e de afastamento emocional para com os Mentores, aumentando sua frustração pelo fato de que, em muitas vezes, essa experimentação dá-se integralmente numa dimensão interior do médium, difícil, inclusive de ser expressa verbalmente (aliás, me perdoem caso esteja sendo repetitivo em determinados termos, por que justamente é algo bastante abstrato para se colocar em palavras específicas). Juntando-se a isso o fato de que a exposição deste estado interior, geralmente, é extremamente mal interpretada dentro do meio religioso. Muitas vezes é visto como perda, ou falta, de fé por parte do filho-de-santo, por falta de compromisso para com os Guias ou o templo, com melindre, “frescura”, ou, pior ainda, quando se une à visão fanática e ignorante de muitos, terminando por ser interpretada como o afastamento do Orixá por estar em desagrado com o seu filho-de-santo, a presença de obsessão espiritual, demanda, magia negra, etc.

Existem várias linhas de conhecimento que tratam, cada uma a sua maneira, do processo de desenvolvimento psicológico do ser humano. E, seguindo um pensamento de síntese, podemos identificar que passamos, de maneira geral, por períodos em nossa vida em que ocorrem profundas transformações, sejam psicológicas, sejam biológicas e, naturalmente, ocasionando que ambos os aspectos estejam inter-relacionados. Os mais famosos são, sem dúvida, aqueles que compreendem o nascimento, a transição da infância para a adolescência, da adolescência para a idade adulta, da idade adulta para a velhice e, da velhice para a desencarnação. Somado a essas transições naturais, psicobiológicas, pelas quais passamos, existem também as experiências profundas de vida que se constituem como temas importantes e marcantes em nossa jornada: a morte de pessoas queridas, o casamento (e a separação), o primeiro emprego, o desemprego, a dificuldade financeira, a primeira experiência sexual, o nascimento dos filhos (e a desencarnação deles), problemas de saúde, fatos agradáveis junto a amigos, familiares, na vida profissional, enfim....

Estes “temas” comuns, interferem também (lembrando que somos pessoas religiosas, mas pessoas comuns) em nosso estado interior e na nossa relação com a Espiritualidade. Então, é natural que, ao passarmos por alguma destas experiências, soframos os choques que nos conduzam a movimentarmo-nos interiormente a fim de, periodicamente, nos ajustarmos e nos adaptarmos aos novos papéis e sentidos que a vida nos impõe e nos pede. Essas transições causam um relativo estado de sofrimento psíquico, constituindo-se, entretanto, como experiências naturais da vida, mediante as provas que esta nos apresenta. 

Os períodos psicológicos mais propícios para o surgimento da Noite da Alma são os da transição da adolescência para a fase adulta (dos 28 aos 32 anos, aproximados) e da fase adulta para a velhice (dos 50 aos 60 anos). Isso porque ambos se referem a períodos da vida em que é exigida, da parte de cada indivíduo, uma definição clara e com consequências sérias, sobre quais são os seus objetivos diante da vida.

Na entrada para a vida adulta, a saída do lar, a busca pela estabilização profissional, a constituição de uma família, sustentar-se por si mesmo integralmente, etc. Na entrada da velhice, a nova condição de limitação do corpo, a diminuição no ritmo profissional, o esvaziamento do lar, a necessidade de encontrar novas metas, uma vez que as da fase adulta já passaram, sendo conquistadas ou não. Esses dois momentos fazem emergir dois sentimentos estruturantes na experiência propícia ao amadurecimento psicológico: a angústia e o abandono (Jesus: "Meu Deus, Meu Deus, por que me abandonastes?"- Mateus 24,46).

Assim, o indivíduo que se apresenta imerso neste estado de Noite da Alma, tende a permanecer em períodos maiores de silêncio, não somente dentro do templo religioso, mas em sua vida cotidiana também, numa postura de maior introversão, tendendo também a manter-se mais isolado, em relação à comunidade religiosa.

Um sentimento de tristeza e de desrealização também faz-se presente, muito embora estes não se expressem ao longo do dia-a-dia, enquanto o indivíduo se entretém com as atividades profissionais, familiares, de lazer, etc. De acordo com o contexto de vida de cada um, esse estado pode se caracterizar também por dificuldades em sua vida particular. Projetos não se realizam ou se postergam, de maneira não planejada, ocasionando um aprofundamento neste sentimento de desconexão espiritual e de frustração.

Um fator importante a ser considerado por aquele que esteja, neste momento, passando por tal experiência. Não deixar que seu estado interior interfira, predominantemente, de maneira prejudicial em sua vida cotidiana. E para isso é preciso, exatamente dentro do objetivo deste texto, entender-se esse estado como sendo natural e possível na experiência religiosa e espiritual, pois é um processo de nossa consciência “movendo-se” para uma nova ordenação de sentidos de quem somos e de qual o nosso papel diante da Vida e de Deus. É um processo de tentativa para se atingir um nível mais amplo e elevado de consciência.

Saliento que, enquanto dure a Noite da Alma (não há um tempo preciso para início e término, depende da experiência de cada um), o indivíduo não perde sua fé, nem sua crença nos Guias, Orixás e em Deus, tão pouco deixa de estimar e gostar de seus irmãos de comunidade. No entanto, está vivendo um estado de introspecção, convidativo à períodos maiores de meditação e reflexão em torno de sua vida e de seus objetivos existenciais. 

Contudo, conforme já dito, é preciso entender, tanto aquele que vive a experiência, quanto aqueles que o cercam (até porque, cedo ou tarde, passarão, se já não passaram, pela Noite da Alma) que esta condição interior não deve se tornar um tormento insuportável que atrapalhe sua vida, de maneira geral. Isso é um processo para o atingimento de um novo estado psíquico (que não tem nada de mágico ou fora daquilo que não seja natural à condição humana). Compreender essa experiência é importante pois, caso contrário, pode gerar um sentimento de grande conturbação, acarretando num impulso inconsciente para o abandono e a renúncia de tudo quanto o indivíduo até então acreditava e se dedicava, como sendo fundamental para a sua vida, gerando processos maiores de sofrimento injustificáveis, pela atitude impensada, inconsciente e imatura.

Dessa forma, uma vez tocado pela Noite da Alma, permita-se o indivíduo à presença da dúvida diante de Deus e de tudo quanto essa dúvida se mostrar. Permita-se, sem culpas, vivenciar essa insatisfação e esse sentido de desconexão espiritual. Natural até, que sua presença na vida religiosa, durante esses períodos de “noite" e “escuridão”, se faça menos frequente e preenchida por um sentido de vazio. Não se culpe por sentir-se insatisfeito e incompleto, conquanto também não transfira para os outros as causas da sua incompletude e insatisfação (por mais que muitas vezes outros, principalmente no meio umbandista, nos dêem muitas razões para isso). 

Deixe, sem medos, que esse Deus “morra” (ou seja, a experiência interior com Deus, que até então havia sido construída e acomodada dentro de si) para que possa renascer, renovada. Para Deus e para Cristo (no caso daqueles que são cristãos), assim como para os Orixás, se de fato eles existem, não há problema algum que você os esteja repensando e reelaborando as suas experiências com eles dentro de si mesmo. 

Certezas inabaláveis e inquestionáveis. Idéias que não se transformam e não se ampliam. Fé que não raciocina, que não interroga a si mesma e que não dialoga com a realidade interior e exterior ao indivíduo, em geral, são indicadores graves de uma perigosa acomodação espiritual. Não nos deixemos tornar, conforme a letra de um rock inglês, muito famoso, que tenho ouvido muito ultimamente, “confortavelmente entorpecidos”.

Contudo, persevere o indivíduo em sua busca por alcançar novos sentidos na sua relação com a Divindade e com a Vida. Não abandone a prática da prece e da oração, mesmo que nestes momentos se façam mais sofríveis e, até, frustrantes. Não se dê licenças morais para “experimentar” tudo o que até então não se permitia, justificando-se em seu estado de obscurecimento, o qual é, conforme já dissemos e ressaltamos, perfeitamente natural. E, se esse sentimento tiver um peso emocional muito grande para ser suportado, talvez por que esteja se ligando a outras questões emergentes de ordem psicológica, nada mais saudável que buscar um aconselhamento e um acompanhamento com um profissional da área.

Aplique-se em reservar momentos diários, mesmo que breves, para meditar e refletir, consigo mesmo, sem censuras nem repreensões para si mesmo, em torno da razão destes sentimentos que o invadem e, aos poucos, com o passar do tempo, irão surgindo novas possibilidades e novos sentidos para o existir e para co-existir em Deus, proporcionando um gradativo amadurecimento interior, preparando-o para novas e mais amplas experiências que se sucederão.

É necessário coragem para o auto-enfrentamento. Atravessar os vales escuros dos quais estamos repletos interiormente, pela condição de seres humanos, ainda rumando para a conquista da iluminação interior e da libertação do sofrimento. Entretanto, essa libertação iluminativa só ocorre quando mergulhamos em nossa escuridão tonando-a consciente em nós. Lembremos que a Luz surgiu das Trevas e não o contrário. 

Muitos ainda fogem deste enfrentamento, por maiores e contínuos sejam os convites da vida para tal cometimento, derrapando, alucinados pelas distrações da vida social, dos hábitos perniciosos, do cultivo de tudo quanto se perde ao longo do tempo, tentando postergar o dia em que deverão olhar para dentro de si mesmos e se auto-enfrentarem, e despertarem diante de seus medos, dúvidas, frustrações, angústias, aflições, etc.

Por mais dolorida e sofrível, seja essa a oportunidade de acender uma luz no seu mundo interior, para a conquista de um novo patamar em seu estado subjetivo, de maneira a viver saudavelmente as experiências a que somos convidados a nos integrarmos conscientemente. 

Saravá a todos.