quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

A Visão de um Adepto: Relações Humanas e o Sentido Religioso

Por: Gregorio Lucio


O templo é a instituição representante de qualquer religião na sociedade. É o local para onde os seguidores dirigem-se afim de sentir o contato com o Sagrado de maneira mais intensa, além de poder compartilhar com o próximo a sua fé.

Assim, os Terreiros recebem diversas pessoas com as mais variadas necessidades e expectativas em relação a religião de Umbanda. Há aqueles que chegam ao terreiro devido a intercorrências da vida (doenças, perda de familiares, crises financeiras ou de relacionamento, desemprego, etc). Há outros que estão vinculados pela própria história familiar, sendo frequentadores da religião desde a infância ou juventude. Há também aqueles que buscam a religião por um sentido de chamado espiritual, o qual emerge com um sentimento de vazio ou inquietação indefinida. Entre muitas outras possibilidades.

Mas, desconhece-se, até então, a realidade da casa e o que, de fato, esta tem a oferecer em termos de propostas e vivências, pelo fato de que a identificação inicial com o templo ocorre, na grande maioria das casas pela visita aos trabalhos a partir da assistência (pois muitas não adotam cursos ou reuniões breves para os novos frequentadores se adaptarem ao ambiente e cultura da instituição). Adquirimos, por isso, uma compreensão somente externa daquilo que está acontecendo dentro do Terreiro.

Idealizamos as pessoas que se apresentam a nós como referência dentro da casa. Imaginamos momentos significativos de contato com o Sagrado. Esperamos por obter ensinamentos continuados que possam aprofundar o nosso conhecimento da religião e de nós mesmos. Idealizar, imaginar, programar, esperar. Isso tudo é parte natural da nossa introdução a qualquer experiência nova. Seja quando iniciamos um curso qualquer; quando entramos numa universidade; quando entramos numa academia ou iniciamos uma terapia.

No entanto, com o passar do tempo, a realidade se apresenta, podendo nos causar frustrações ou gratificações diversas, em torno das pessoas, da casa e de nós mesmos.

Podemos nos sentir gratos quando alguém nos recebe com alegria, cumprimentando-nos com um sorriso espontâneo; quando um irmão ouve com atenção e paciência as nossas dúvidas ou pensamentos. Quando participamos de um trabalho e presenciamos a emoção de uma pessoa que fora auxiliada; quando observamos e nos tocamos com a fé e dedicação de algum irmão ou de nosso sacerdote. Quando temos a oportunidade de ajudar em alguma atividade da casa.

Da mesma forma, também passamos a identificar disputas internas, entre dois ou mais membros da comunidade. Presenciamos comportamentos questionáveis por parte de alguns. Vemos pessoas afastando-se ou sendo afastadas. Sentimos, nós mesmos, o desejo de nos afastar. Não compreendemos a razão de determinadas posturas, decisões, comportamentos e hábitos de um irmão ou mesmo do nosso sacerdote. Frustração.

Por um outro lado, identificamos em algumas dessas mesmas pessoas (não em todas, pois há aqueles que encontram-se numa condição, embora momentânea, em que talvez tenham como significado somente o de servir como um mau exemplo), valores e condutas que por vezes não reconhecemos em nós mesmos. Devoção. Compromisso. Companheirismo. Carinho. Atenção. Alegria. Respeito. Seriedade.

Outras vezes, a insegurança perante os trabalhos espirituais nos envolve, ao acharmos que fomos colocados em meio ao trabalho sem termos recebido as devidas orientações anteriormente, soando como se tivéssemos que "fazer" ou nos comportar de determinada maneira, simplesmente porque "deve ser assim". Essa despersonalização, causada por ter que repetir posturas e comportamentos sem ter uma noção clara de seus significados, cria, por vezes, sentimentos de estranheza e tédio.

Conquanto, em outras situações, ao participarmos de mais uma noite de trabalhos da casa, podemos receber uma intuição ou mensagem marcante em nosso coração. Surge-nos uma inspiração com uma resposta para determinado conflito ou problema que estejamos vivendo. Saímos do trabalho com um forte sentimento de amparo e conforto para continuarmos em nossa vida comum do dia-a-dia. Reconhecemos a presença sutil, indefinida, porém, certa, de que estamos sendo sustentados e envolvidos por uma dimensão Sagrada e Divina que emana das correntes espirituais presentes no Terreiro a que pertencemos.

Perceba o amigo leitor que tenho intercalado questões contraditórias. Ora, dúvidas, frustrações, questionamentos, receios. Ora, certezas, gratificações, respostas, confiança. Tudo isso para simbolizar o lado Humano e real presente no Terreiro. É essa condição de Humanidade presente dentro do ambiente religioso, com suas contradições, idiossincrasias, virtudes e valores, que nos coloca em contato com a realidade existencial das criaturas humanas.

Cada um, na sua subjetividade, constrói e acumula suas próprias experiências, seja dentro dos templos, seja em sua vida particular cotidiana, as quais resultarão nas bases para o sentido da fé no íntimo de cada fiel. Mas a presença do Sagrado, por meio dos Orixás, Guias e Protetores, é qualificada pelas pessoas humanas que compõem o corpo de adeptos de cada Terreiro. Se temos uma casa onde, apesar da existencia de possiveis conflitos predomina o interesse sincero no trabalho, no auxilio ao próximo, na expressão da fé religiosa, o contato com o mundo espiritual superior faz-se mais intenso e marcante. Se, ao contrário, as relações se estremessem e os conflitos são contínuos, a ponto de dominarem o ambiente, a discórdia e o desinteresse, crescem, promovendo o afastamento da dimensão Sagrada que deveria estar presente ali.

É importante ponderar essas questões para entendermos que a presença dos Guias e Protetores, Santos, Orixás, Mentores de Luz, Espíritos Superiores, Anjos, Espírito Santo, seja lá a maneira como cada templo religioso denomina a presença do Sagrado em seu ambiente, ocorre em função das pessoas que lá estão, pois são elas mesmas a ponte por onde esse mundo transcendente pode acessar a nossa dimensão física, corpórea, humana.

Sendo assim, se por um lado o sentimento da fé é uma experiência particular que surge no interior de cada ser humano como elo sutil entre o homem e o Divino, na experiência religiosa, é somente no contato e vivência com o outro (com o irmão de fé e com o sacerdote) que esta vivência da fé estrutura-se e preenche-se de significado. A fé se constrói na experiência concreta das relações humanas. Quando optamos por experienciar a fé adotando uma denominação religiosa, nos sentimos ligados espiritualmente ao Sagrado na mesma razão em que nos reconhecemos acolhidos e pertencentes ao templo que nos vinculamos.

Os sentimentos de acolhimento e pertencimento à religião e ao templo religioso, são despertados ao longo do tempo e sucedem-se em fases.

Primeiramente, o acolhimento. Ser bem recebido e bem tratado é fundamental para que o neófito sinta segurança e identificação com os frequentadores da casa. Esse processo de acolhimento geralmente se desenvolve no primeiro ano de frequência por parte do novo fiel. É neste período em que ele vai estabelecer os primeiros contatos com os seus irmãos, expor suas necessidades, conflitos (caso os tenha), dúvidas e experiências passadas, Poder contar com irmãos receptivos, atenciosos e desinteressados, sem afetação e emotividade desnecessárias, é importante para que este possa reconhecer-se bem recebido e contando com pessoas que estejam a fim de ouvi-lo e orientá-lo minimamente.

Por isso, as "panelinhas" são tão negativas. Embora seja natural que por questões de afinidades (muitas vezes, momentâneas) as pessoas com identificações procurem-se dentro da casa, estabelecendo vínculos, é preciso que sejam incentivadas (e esse é um papel que cabe à direção e aos orientadores dos grupos de médiuns do terreiro) a conservarem uma postura de abertura junto aos novos frequentadores. Isso porque as "panelas" tendem a isolar os novos entrantes da casa, o que pode gerar um sentimento negativo de insegurança e inadequação nestes.

Em seguida, passados estes primeiros 12 meses (em média) correspondente ao período de adaptação e acolhimento, espera-se que o novo frequentador da casa, possa construir o sentimento de pertencimento àquele ambiente cultural e religioso. Esse sentido, contudo, também depende totalmente da experiência que o adepto realiza com seus irmãos de fé e seu sacerdote. Eu entendo que para nós nos sentirmos pertencendo à religião, ao Terreiro que seguimos, não basta simplesmente um sentimento de fé e de confiança naquela determinada crença e no seu sacerdote. Devemos nos reconhecer como fazendo parte de um meio que possui raizes, histórias, memórias, valores e princípios muito bem consolidados e claros. Essas "coisas" devem ser transmitidas aos novos frequentadores e lembradas aos que já possuem mais ou menos anos de casa.

Penso que devemos, todos nós umbandistas que frequentamos um Terreiro, refletir com ponderação e moderada preocupação (e não somente achar que isso é um problema exclusivo da direção da casa), quando uma pessoa decide se afastar de nossa casa. Será que é simplesmente "falta de fé" ou "falta de compromisso"? Ou será que as relações humanas não estão sofrendo com conflitos e posturas nocivas, muito embora pontuais, impedindo que se crie ou amplie os sentimentos de acolhimento e pertencimento que são tão importantes na formação da identidade religiosa por parte do fiel?

Quando há uma centralização e interdição muito forte e presente dentro do Terreiro, em relação ao conhecimento histórico, às memórias, afetividades e ensinamentos pertencentes a este, torna-se também difícil o reconhecimento íntimo de que pertencemos àquele lugar. É simples. Como posso fazer parte de algo, de um lugar ou de um grupo de pessoas sobre os quais sei muito pouco ou nada sei? Talvez essa regra não se aplique àquelas pessoas de feição psicológica mais passiva e submissa. Mas, num âmbito mais comum, onde estão as pessoas de capacidade de raciocínio e crítica média, na qual nos encontramos a maioria de nós, simplesmente o sentimento de "estar submetido" ou "entregue" a algo ou alguém não satisfaz mais.

Mas também não quero desconsiderar a responsabilidade individual dos frequentadores, sejam os novos ou antigos, em relação as suas escolhas de se manterem ligados ou de se afastarem do Terreiro. Com tudo isso o que disse, não estou querendo colocar tudo sob a responsabilidade dos "outros". Se irá permanecer, e de que maneira irá permanecer; assim como se irá embora, e de que maneira acontecerá isso, é também responsabilidade do indivíduo.

Não serão incomuns os dias que, ao chegar no seu terreiro e saudar os irmãos, praticamente não ouvirá ninguém lhe respondendo de volta. Isso faz parte (embora não justifique). Porque o tempo nos acomoda e nos torna distraídos para determinadas coisas. Entretanto, sempre haverá um sorriso fraterno e educado o suficiente para lhe retribuir o cumprimento. Que pequenas coisas possam bastar para a nossa satisfação enquanto percebermos significados reais e propósitos duradouros naquilo que escolhemos seguir.

Haverá várias oportunidades em que nos depararemos com conversações infelizes ao nosso redor, provocadas por irmãos distraídos, dentro do ambiente do terreiro. Mantenhamos o silêncio respeitoso, de nossa parte. Não nos deixemos contaminar e reflitamos que também nós por vezes também agimos de maneira infeliz e necessitamos da paciência e do silêncio de outros para também nos suportar os momentos de desequilíbrio e infelicidade.

Possivelmente, nos veremos cercados por irmãos fazendo brincadeiras desnecessárias e nos convidando para irmos ao barzinho ali, depois dos trabalhos. Reflitamos a respeito de suas propostas e condutas, e analisemos se a presença em determinados ambientes são compatíveis com alguém que acabou de sair de um trabalho espiritual. Vale lembrar que essas pessoas estão equivocadas e não nos devem servir como parâmetro, nem seus hábitos e valores devem ser aceitos e adotados por nós. Tão pouco, esses comportamentos e preferências, embora reais e presentes em muitas pessoas, representam os verdadeiros valores e propósitos de vida a que a Umbanda nos convida.

Certamente, passaremos por ocasiões em que o deboche, a fofoca e o queixume nos cheguem aos ouvidos. Não nos deixemos levar. Entrar nesta vibração nos envenena o coração e enfraquece nossas forças, paralisando-nos. Por outro lado, desculpemos o comportamento irrefletido do nosso próximo. Analisemos se o que diz, e até que ponto daquilo que está falando é útil ou tem veracidade. Tiremos o que serve para nós, o resto deixemos ir embora com ele. E, de nossa parte, não nos permitamos, a nós mesmos, sermos também veículo dessas palavras que desestimulam, criam descontentamento e conflitos entre irmãos de fé.

Devemos conservar uma postura de tolerância e compreensão, sempre. Reconhecendo os valores positivos que cada um traz consigo, de maneira a nos tornarmos mais próximos, moralmente e psicologicamente, dos demais. Tenhamos sempre uma atitude de compaixão e empatia. Educação e respeito. Sobriedade e disciplina. Silêncio e serenidade. Porém, não deixemos jamais de buscar corrigir em nós e também em nossos irmãos, com tranquilidade e singeleza, as expressões menos felizes e condutas inadequadas quando elas se apresentem e estejam dentro de nosso alcance. Para aqueles que pouco ou nada podemos fazer, principalmente os mais velhos de casa que prosseguem numa postura irresponsável e desrespeitosa, deixemos eles a cargo e responsabilidade dos dirigentes, sem nos abalar com seus maus exemplos, no entanto, sem, em momento algum, sermos coniventes e compartilhadores de suas posturas, hábitos e ideias.

E, por fim, pensemos antes e acima de tudo, a respeito de nossos próprios propósitos e conduta. É importante conservarmos uma postura madura e responsável, independente da casa a que optarmos por nos vincular, buscando ser úteis, cooperativos e conciliadores. Não significa fazer de conta que não está vendo situações que lhe causam desconforto e conflitos. Mas é, apesar disso, saber se posicionar perante esses acontecimentos e pessoas, e prosseguir sua caminhada, dando valor a outras coisas que lhe sejam mais internas e menos centradas no comportamento alheio.

Observemos a conduta do nosso próximo, compreendendo as suas diversas formas de apresentação, por se tratar de um ser humano, com virtudes e defeitos, porém saibamos guardar para nós somente o que for bom e saudável. E, sempre, cuidemos principalmente de nossas próprias expressões, pensamentos e palavras, para que estejamos seguros, éticos e coerentes com nossos próprios princípios diante da seara que optamos por seguir, dentro das Leis de Umbanda.

Saravá!