quarta-feira, 3 de abril de 2013

Deixem que os mortos cuidem dos mortos

(capítulo extraído da obra “Causos de Umbanda”, pelo espírito Vovó Benta) 

“Os verdadeiros laços de família não são, pois, os da consanguinidade, mas os da simpatia e da comunhão de pensamentos que unem os espíritos antes, durante e após a sua encarnação”.

Maria Madalena, que nunca foi muito chegada aos assuntos da religião, restringia sua fé a fazer o sinal da cruz ao se deitar na cama e ao se levantar dela. É claro, havia batizado seus filhos na Igreja Católica, afinal eles precisavam ter padrinhos. Por várias vezes em sua vida sentiu curiosidade em visitar aquele centro espírita que ficava próximo a sua casa, mas desistia ao pensar que essas coisas acabam viciando as pessoas, além do que nem tinha motivos para isso, pois sua vida estava ótima.

Hoje, vendo-se ali na fila, aguardando atendimento num centro de Umbanda, não fosse o motivo que tinha e que era sério demais, ela mesma custaria a acreditar. Apesar de achar tudo muito estranho, ao entrar no templo sentiu uma sensação de aconchego e um alivio na dor que trazia nas costas.

- Saravá, zi fia! – exclamou aquele preto velho incorporado num médium que lhe servia de aparelho.

A palavra “saravá” não lhe caiu muito bem, pois imaginava que isso significava algum tipo de feitiço ou mau feito e, instintivamente, fez o sinal da cruz.

- Eh, eh, zi fia, tá se benzendo porque ta cum medo de nego véio?

Pronto, já estava arrependida de estar ali...mas o motivo pelo qual viera valia qualquer sacrifício e, de pronto, sem esperar ter de ouvir mais nada, foi falando:

- Eu vim aqui por que me falaram que vocês podem falar com os mortos.

Sorrindo e baforando seu pito, o preto velho amorosamente falou:

- Ah, zi fia, não só o povo daqui fala com os mortos, suncê tá falando com um agora mesmo...

Um arrepio correu pela espinha da mulher, que empalideceu.

- Calma, zi fia, esse moço que tá aqui é um médium e quem fala através dele é um ser humano como suncê, só que num tem mais a carcaça de carne e que todo mundo o chama de morto.

- Vo...você é um mor...morto? – gaguejou a mulher, que já tremia de medo.

- Morto num fala, zi fia. Eu tô é muito vivo...eh...eh...

E com paciência inerente aos pretos velhos, Pai José explicou à mulher sobre a vida imortal do espírito e sobre a continuidade da vida no mundo astral e da importância de vivermos bem aqui para que a chamada morte não nos pegue de surpresa.

Já mais tranquila, a mulher então conseguiu desabafar:

- Bem, como me falaram que aqui conseguem falar com os mortos, eu vim até aqui justamente para pedir que me trouxessem alguma notícia do meu finado marido que morreu há três meses. Sinto muito a sua falta, além disso tenho sonhado com ele quase todas as noites. Tenho ido ao cemitério todas as semanas e, mesmo assim, a tristeza não passa. Ele morreu de um ataque fulminante do coração e ficaram muitas coisas para serem resolvidas, por isso acho que sua alma não consegue descansar.

- Zi fia precisa largar desse homem. Suncê o está prendendo aqui, onde não é mais o seu lugar.

- Como assim?

- Como nego véio já explicou, todos temos um tempo para viver na carne. Findando esse tempo, temos que seguir para o mundo dos espíritos e viver em espírito, aguardando nova oportunidade, novo corpo para voltar à face da Terra. Quando nossos entes queridos partem desse mundo, tudo que era material aqui termina. Como a morte vem sem aviso prévio e sem gaveta no caixão para levar os bens terrenos, a maioria se desespera e, não conseguindo enxergar o socorro, padece nos umbrais ou simplesmente permanece junto aos familiares. Outras vezes, acontece o oposto. A criatura desligada do corpo físico e pronta para seguir em corpo astral é constantemente chamada de volta pela energia dos familiares inconformados, que viram verdadeiros obsessores do morto. Desespero não ressuscita ninguém, zi fia. O que não tem remédio, remediado está. No mundo onde se encontra seu marido, a matéria, o dinheiro, o seguro de vida, os bens aqui adquiridos não existem. Lá, aprende-se a cultivar outros valores e deles tirar o sustento para o espírito.

O preto velho sabia que o que mais incomodava a viúva, não era a falta da presença ou saudades do marido, mas o fato de ter ficado com dívidas a resgatar feitas por ele e a falta do seguro de vida que ele dizia pagar em seu benefício, quando morresse.

- Suas visitas ao cemitério de nada estão adiantando, além de fazerem com que busque, naquele lugar que centraliza energias deletérias, algumas coisas nada agradáveis para sua vida. Precisa, sim, elevar seu pensamento a Deus e agradecer pelo tempo em que conviveu com essa pessoa que lhe deu uma vida confortável e feliz. Ore por seu espírito para que possa alcançar a luz e seguir sua caminhada. Os problemas que ficaram na Terra à Terra pertencem, e sua obrigação é agora resolvê-los.

- Mas eu nunca lidei com os negócios, ele resolvia tudo.

- Mais um motivo para não desesperar e sim aproveitar a ocasião para um aprendizado, pois casamento não é bengala para um dos dois se acomodar, zi fia. Quem casa, presume-se que arruma um companheiro para viver ao seu lado. Veja bem: ao seu lado, nem à sua frente, nem atrás de si. Todos os acontecimentos devem ser compartilhados para que não aconteçam surpresas na hora em que um dos dois tiver que partir. Mas como não adianta lamentar o que já passou, é hora de zi fia tirar essa roupa preta e partir para o aprendizado que a vida está lhe oportunizando. Pensa agora nos momentos bons que viveram juntos e viva dessa energia. Não cobre de quem não pode pagar aquilo que deixou de fazer aqui e pense que agora talvez seja a hora de você fazer a sua parte. Quem lhe informou que aqui fazemos contato com os mortos não mentiu, mas omitiu a verdade de como isso acontece. Só vem se comunicar com os vivos, os espíritos que já estão aptos a isso por necessidade de trabalho, de auxílio, como fazem os guias e protetores. Jamais devemos, seja por curiosidade ou mesmo por saudades, forçar comunicação com nossos entes queridos que partiram. O mundo dos “mortos” é grandioso e complexo ainda para o entendimento dos vivos e, como disse Nosso Senhor Jesus Cristo, “na casa do Pai existem muitas moradas”. Não sabendo em que lugar e em que condição se encontra o desencarnado, não devemos atormentar sua consciência com pedidos que ele pode não poder realizar. Se o amamos, devemos preservar sua integridade pós-vida com oração, que vai chegar até onde ele estiver em forma de bálsamo suavizante. Deixemos que os mortos cuidem de seus mortos e os que ficam vivos que procurem viver o que lhes resta de tempo, da melhor maneira possível. Não são lágrimas derramadas, nem o luto usado, muito menos as visitas ao túmulo que vão dizer do nosso amor a quem partiu, mas sim a nossa atitude racional de fazer dessa dor um motivo para suavizar a dor de tantos outros. Quem sabe, acalmar a dor dos que ainda vivem e com os quais eu posso falar, fazendo de minha voz um alento às suas dores. Quantos, embora vivos, jazem num leito, sentindo-se mortos pela discriminação das pessoas que os abandonaram pelo preconceito. Ache-os, zi fia, e leve a eles uma palavra de conforto, um alimento para seu espírito e também para seu corpo. E quando estiver fazendo isso, lembre-se de que seu esposo estará recebendo de alguém que pode chegar até ele o mesmo carinho e a mesma caridade. A vida é assim, filha. Nós somos elos de uma mesma corrente e a grande lei nos faz iguais diante do Pai. Tudo se reflete na tela universal. Por isso, tanto o que fizermos quanto o que pensarmos de ruim ou de bom há de se voltar para nós mesmos. Esqueça essa história de falar com os mortos e vá viver, zi fia. Vá ser feliz e fazer alguém feliz, porque a vida que ganhamos não é para sofrimento, mas para crescimento.

Naquele momento, um facho de luz iluminou o terreiro. Seres que trabalham nas fileiras do Bem resgatavam aquele espírito que sofria sendo arrastado pelo sentimento da esposa desorientada. Ela, por sua vez, suspirou, sentindo que a dor de suas costas, aliviava e que seu coração parecia mais leve.

- Siga, zi fia... que o grande Zambi a acolha em de suas moradas.

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