sábado, 9 de fevereiro de 2013

Onde o Reside o Preconceito?


ONG Círculo de São Francisco

Ciclo de Palestras:

Imaginário e Cultura Mediúnica no Brasil.

Onde Reside o Preconceito? O Índio no Imaginário Espiritista

Por: Adilson Marques 

Na revista Universo Espírita, edição de fevereiro de 2005, um instigante artigo foi publicado comentando o preconceito de algumas casas espíritas em relação às entidades que se manifestam na forma de índios e pretos-velhos.

Pela composição do artigo, temos a impressão de que o preconceito está na mente de alguns espíritas e o artigo visa diminuir ou desfazer tal preconceito mostrando que por trás dessa forma mais humilde, pode se ocultar um espírito muito evoluído ou iluminado. Porém, será que o preconceito não é inerente à própria Doutrina Espírita? Ou, em outras palavras, inerente ao espiritismo kardescista?

Vejamos como a questão é colocada pelo próprio Kardec. Este, ao discorrer sobre as categorias de espiritos, é taxativo ao afirmar que no plano espiritual encontram-se desde espíritos “selvagens” até “civilizados europeus”. Nota-se aqui, nitidamente, uma classificação evolucionista do tipo linear e eurocêntrico, típico do pensamento antropológico do século XIX.

Lembramos que selvagem é um expressão que ganhou força após o Descobrimento das Américas e passou a ser utilizada na identificação dos povos que habitavam este território. De certa forma, ele substituiu a expressão “bárbaro”, que na Antiguidade Clássica significava “povo que falava outra lingua”, mas que, com o passar do tempo, passou a ter uma conotação pejorativa, identificando a “inferioridade cultural” dos povos não romanos.

Linguisticamente, a palavra “selvagem” poderia até ser utilizada para identificar os povos que vivem na selva ou em contato mais intenso com a natureza, enquanto “civilizado” identificaria os povos que vivem nas cidades ou nas áreas urbanas. Porém, tal distinção serviu e ainda serve para legitimar uma cultura em detrimento de outra e “selvagem” passou a ser sinônimo de “inferior”.

Essa é a classificação eurocêntrica que não se encontra apenas em Kardec. Gabriel Dellane afirma, em seu livro Evolução Anímica, que os índios brasileiros carecem de inteliência superior, baseando-se na literatura preconceituosa dos viajantes e antropólogos do século XIX. Possivelmente, foi graças a essa carência de “inteligência superior” que fez com que praticamente todos os povos indígenas, antes da aculturação imposta pelos colonizadores, aceitassem a tese da reencarnação, mantivessem contatos mediúnicos com seus antepassados (aprendendo, por tais vias, a identificar plantas medicinais, por exemplo).

Voltando a obra kardequiana, “inferiores” não são apenas os selvagens indígenas, mas também os povos orientais. Em seu livro “O que é o Espiritismo” deixa evidente que um espírito chinês, após várias encarnações passa a encarnar em um meio mais evoluído, compatível com seu novo grau de evolução. Tomando por base sua visão eurocêntrica, possivelmente esse meio mais evoluído só poderia ser a Europa. Mas, curiosamente, no século XX, os civilizados europeus foram os responsáveis pelas guerras mundiais, enquanto a medicina “inferior” dos chineses (acupuntura, práticas corporais como T’ai Chi Chuan, etc) invadiu o mundo dito civilizado no tratamento das inúmeras doenças civilizadas, entre elas o estresse.

Infelizmente, quando as idéias civilizatórias do Ocidente chegaram ao poder da China, com a Revolução Comunista, o confucionismo foi perseguido, o Tibet foi invadido e destruído, as técnicas tradicionais de cura foram proibidas, etc, demonstrando que os civilizados chineses aprenderam muito bem a lição de casa de seus pares ocidentais.

Aqui no Brasil, na década de 1920, a Federação Espírita publicou uma nota em sua revista oficial afirmando que, apesar as entidades espirituais indígenas e dos pretos-velhos serem espíritos que vem do além, eles não são entidades que se pautam pelo kardecismo. Ora, tal declaração demonstra que tais entidades não devem ser aceitas nos centros que se pautam pelo princípio doutrinário kardecista. Procurei verificar se tal “deliberação” foi revogada nos anos seguintes, mas não obtive até agora uma resposta afirmativa. Assim, se ela ainda é válida, todos os centros espíritas filiados à Federação que permitem a manifestação de índios e pretos-velhos não podem ser classificados como kardecistas. Talvez sejam divinistas, umbandistas ou outra denominação, menos kardecistas.

Porém, se a Federação já anistiou tais entidades, ela “evoluiu” e, paradoxalmente, afastou-se do kardecismo, pelo menos desse ranço preconceituoso e eurocêntrico. Não resta dúvida de que o kardecismo foi e é importante na divulgação da existência da vida após a morte, da reencarnação como um fato evidente e natural, mas o preconceito aos povos não-europeus é também um fato inerente à própria doutrina, presa, como é natural, à consciência dominante do século XIX, em que surgiu. É por isso que devemos reconhecer o mérito de Kardec e perdoar estas pequenas “falhas” eurocêntricas. Ele pensava como homem e não como espírito eterno, liberto das amarras da Terra. E não só Kardec foi um homem eurocêntrico.

É importante compreender que Kardec foi um homem de seu tempo e viveu todo um cenário sócio-cultural e político onde o homem europeu se via como o supra-sumo do processo civilizatório, fosse ele ateu ou espiritualista. Assim foi também Karl Marx, Immanuel Kant e tantos outros pensadores europeus. A exceção, talvez, seja o príncipe anarquista Kropotkin, que sempre criticou a colonização predatória e o domínio cultural que a Europa tentava impor aos povos da América e da África.

Assim, se devemos compreender esse “erro” de Kardec, pois ele não podia imaginar o que aconteceria no século XX, é difícil aceitar que escritores ainda hoje publiquem livros afirmando que os espíritos indígenas são os bárbaros que invadem a “civilização” por meio da reencarnação e os responsáveis pelo violência urbana.

Um dos mais significativos livros que demonstram o imaginário espiritista em relação aos índios é “Reencarnação: tudo o que você precisa saber”, do escritor, doutrinador e palestrante espiritista Richard Simonetti. Neste livro, ele afirma que estamos vivendo uma “nova invasão de bárbaros”, semelhante a que foi verificada na Idade Média. A diferença, porém, é que os “bárbaros” invadem a “civilização” pelo mecanismo da reencarnação.

E quem seriam os “bárbaros” da pós-modernidade? Para esse autor seriam as populações indígenas. Segundo suas próprias palavras:

“na medida em que a civilização avança, reduz-se o espaço destinado a esses nossos irmãos vinculados à taba. Nas Américas, foram dizimados milhões de indígenas, atendendo aos interesses, do homem branco, que ocupou seus espaços, seu habitat. Por isso reencarnam em nosso meio, estão em todas as camadas sociais, mesmo na classe abastada.

O problema maior é quando reencarnam no seio das populações carentes, porquanto, premidos pela necessidade, não vacilam em roubar e matar”.

(parênteses do Gregorio: já se imaginou como um índio, ou descendente de índios, lendo uma coisa dessas??)
Quem conhece um pouco de história e de antropologia sabe que a violência sempre fez parte do cotidiano dos povos que se intitulam “civilizados” e, possivelmente, a violência será a marca mais eminente que tais povos deixarão para a posteridade.

Assim, do ponto de vista histórico, jogar a culpa pela violência atual em cima de uma raça é uma afirmação pueril. Da forma como esse autor apresenta o seu ponto de vista, ele, ao invés de esclarecer, fornece mais munição para as pessoas que não acreditam em reencarnação e em vida após a morte, e que acreditam que o espiritismo é uma “doutrina irracionalista”, também dizerem que ela é uma doutrina preconceituosa.

Infelizmente, enquanto muitos livros são classificados como “não-doutrinários” e, de certa forma, proibidos de serem vendidos em feiras e livrarias espiritistas, o livro acima é um dos mais recomendados pelas Federações Espiritas e pelas USEs (União de Sociedades Espíritas), logo, só podemos constatar que não são poucos os dirigentes espiritistas que compartilham da opinião preconceituosa do autor.

Reproduzo abaixo um email que recebi de uma jovem negra, estudante de Ciências Sociais, UFSCAR, que procurou a ONG Círculo de São Francisco de Assis para obter orientações:

“eu já senti na pele preconceito dentro das casas espíritas kardecistas, fato que me levou a um total afastamento e descrença de tudo que se relacionava com o espiritismo kardecista , hoje ainda tenho minhas reservas, vou dar um depoimento para exemplificar aquilo que eu estou tentando passar. Há cerca de sete anos atrás resolvi fazer o COEM em um centro kardecista em São Carlos, por motivos eticos, não vou dizer o nome.

Chegando lá, um Doutor em Física pela USP (isso talvez lhe desse autoridade e competencia para dizer o que ele me disse) foi fazer comigo uma “entrevista” para saber porque eu queria fazer o COEM, o que esperava, se já tinha indícios de mediunidade, se já havia frequentado centros espiritas, se já havia lido livros doutrinários, etc, etc.

Eu respondi que já tinha ido em centros de umbanda e que lá haviam me dito que algumas coisas que eu sentia eram indícios de mediunidade. Aí ele me disse que eu tinha ido a lugares de espíritos pouco evoluídos, que eu nunca devia pisar num lugar desses, que lá a pior falange se esconde, que talvez eu tivesse que fazer em paralelo com o COEM (Curso de Médiuns) um trabalho de desobsessão para me livrar de fluidos negativos que eu poderia ter pego lá.

Eu fiquei atonita quando ele me disse exatamente isso:’que nesses lugares só vão espíritos atrasados, negros, índios, que falam errado, e que o pior ainda eram os rituais de batuque, cantoria e danças!’.

Nesse momento eu fiquei muit indignada, frequentei apenas a primeira reunião do COEM e nunca mais pisei ali dentro. Fiquei perturbadissima, achei Deus injusto, eurocêntrico, pois como ELE podia permitir que num lugar que pessoas simples, humildes vão atrás de consolo, atue uma falange de seres atrasados?

Então os rituais afro-brasileiros são um engodo? Já num centro kardecista frequentado em sua maioria por brancos ocidentais, com bom nível educacional estava reservado um tratamento de primeira categoria com espiritos da mais alta evolução? Deus é assim? Divide também seus filhos em classes sociais antagônicas?

Demorou algum tempo para mim, uma cientista social, que estudou antropologia, digerir as imbecilidades que o “Doutor” falou para mim (acho que estou tentanto até hoje).

Prefiro a “ignorância” de um preto-velho que me consola, do que a arrogância de um “Doutor”, homem, branco, e “ocidental” que me angustia e desorienta. Depos disso, por incrível que pareça, comecei a saber fatos da vida de um monte de gente que frequentava aquele centro. Fiquei mais perturbada ainda, comecei a ver muitos deles em essencia e não em aparencia, parecia que talvez “espíritos atrasados” estavam me mostrando coisas para eu constatar sei lá o que.

Aos pobres talvez reste o consolo da suposta hipócrita caridade que muitos ali dentro arrotam por aí, e que dentro de casa explorem sua “preta-velha”, empregada doméstica, e talvez ainda encontre na doutrina justificativas para muitos atos de falsa caridade cristã.

Sei que muitos vão me pregar na cruz, mas para fazer a suposta caridade que muitos kardecistas fazem, prefiro não fazer. Acho mais honesto.

Há um tempo atrás lendo Hammed, ele diz exatamente isso, que se não estamos preparados para nos entregar verdadeiramente a um trabalho caritativo, que não devemos fazer apenas para contemplar os olhos do mundo.

Esse “oriental” me consolou, não me senti mais culpada por não conseguir fazer a falsa caridade que muitos fazem”.

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