sábado, 9 de fevereiro de 2013

Perdoai as minhas ofensas



(capítulo extraído da obra "Causos de Umbanda", autora: Leni Saviscki e pelo Espírito Vovó Benta)


"Fazei esforços para entrar pela porta estreita, por que eu vos asseguro que vários procurarão por ela entrar e não o poderão".

Enquanto o cambone ajeitava uma cadeira para aquela senhora sentar-se em frente ao preto velho, Nhô Benedito, batendo o pé no chão do terreiro, cantarolava baixinho e supria de fumo o seu cachimbo.

Entre gemidos e reclamações com o menino que lhe servia de bengala, uma vez que ela mancava de uma perna, a mulher se acomodou, olhando desconfiada para o médium incorporado à sua frente.

- Saravá. zi fia! Como tá suncê?

- Mal, muito mal. Já estou sofrendo dos nervos de tanto andar em busca de uma cura para minha perna enferma.

- E o que é que tem sua perna, zi fia?

- Pois é isso que espero que me digam aqui, porque os médicos me falam que é psicológico, já que os exames não apresentam nada. Acham decerto que estou louca, que invento essa dor, mas eu é que sei quanto sofrimento tenho passado.

- Zi fia lembra quando é que a dor começou?

- Não lembro...

Como se um filme se abrisse em sua mente, agora desenhava-se o dia em que sentiu pela primeira vez uma espécie de câimbra na panturrilha e, desde então, nunca mais a dor cessou. Lembrou-se do ataque de nervos que tivera ao chegar em casa e encontrar um "despacho" no portão e de como o havia chutado, espalhando o material todo pela rua.

De crença evangélica, desdenhava e abominava esse tipo de coisa, imaginando que aquilo era obra do demônio, embora acreditasse que por ser cristã e temente a Deus isso não a atingia. Alguém havia colocado a macumba em sua porta. Com certeza, fora sua empregada que, por ser negra, devia ser macumbeira. Fez um verdadeiro escândalo em torno disso, acabando por despedir a pobre moça, que era inocente.

- Zi fia não devia ter chutado aquela oferenda.

- Uai, como você sabe disso se não lhe contei?

- Eh, eh zi fia. Nego véio sabe de muitas outras coisas que a filha ainda não me contou. Sabe inclusive que, depois do acontecido, juntou seus irmãos de fé da sua igreja e, no silêncio da noite, colocaram fogo numa tenda de umbanda muito humilde que existia no bairro.

- Claro, eram eles que faziam essas macumbas que ficavam largando em nossas portas.

- E quem lhe afirmou?

- E quem haveria de ser, se não eles, que lidavam com essas coisas?

- Nego véio pode afirmar com todas as letras que não foram eles, pois lá era um templo de umbanda e não uma casa de macumba. A filha precisa aprender a diferenciar uma coisa de outra. Por exemplo, hoje está aqui numa casa de caridade onde se pratica a umbanda, pedindo socorro para suas dores e, como pode ver ao seu redor, não está encontrando nada que possa desacreditá-la disso. A filha por acaso não se lembra de ter difamado alguém no passado?

- Ah, foi aquela desgraçada, é?

- Desgraçada...pois é! E quem a desgraçou? A filha precisa refletir sobre isso. A antiga noiva de seu marido foi duramente humilhada pela senhora através de uma calúnia e depois a senhora ainda lhe roubou o noivo amado. Ela, no limite de seu desespero, procurou um macumbeiro de aluguel e resolveu vingar-se, tentando enfeitiçar a traidora. Desgraçada foi sua atitude que fez desabrochar toda essa desgraceira na vida de ambas. Ou será que a magia da moça traída foi pior do que a calúnia que sofreu, levando-a mais tarde a ter um sério problema mental?

- É, ma...mas...

- As duas erraram. Ambas fizeram magia negra.

- Eu nunca fiz isso, não me meto com essas coisas.

- Zi fia precisa entender que magia se faz para o bem ou para o mal e que aquele feitiço encontrado na porta da casa pode ser menos maléfico do que algumas palavras ditas com sentimento de raiva, emitidas por um espírito de grande poder mental. A calúnia age como uma lata de tinta jogada no ventilador. Vai respingar longe e, por mais que tentem limpar, sempre vão sobrar alguns respingos para lembrar o fato ocorrido. As palavras ditas são energias emanadas no cosmo que ficam ecoando em notas sonoras, conforme a vibração que foram emitidas. Desgraçam a pessoa atingida mas, como tudo neste mundo de meu Deus, tem retorno certo, acabam de alguma forma voltando para o emissor. Portanto, filha, quando você detonou seu primeiro tiro a guerra iniciou. E, como toda guerra, a luta não foi só terrena. Movimentaram-se no mundo astral os afins com suas energias, intuindo-as ao revide. Veja bem como tudo se consumou de maneira absurda, pois você, que se dizia seguidora de Jesus, incentivou seus irmãos de crença a queimarem um templo de caridade que nada tinha a ver com sua ira.

- Então quer dizer que essa dor é castigo.

- Não, não é. E se você é cristã e leu a Bíblia, deve saber perfeitamente que Deus não castiga seus filhos, pois Ele é bondoso e perfeito. Nós colhemos o que semeamos, e a filha plantou vento, por isso está ainda colhendo tempestades. O feitiço ou qualquer tipo de magia negativa só vão surtir o efeito desejado na pessoa para a qual foram endereçados se ela estiver vibrando na mesma faixa, ou seja, se tiver energia condizente com o mal enviado. Naquele dia, se em vez de chutar e destilar sua raiva, tivesse feito uma oração e recolhido respeitosamente aquilo tudo, devolvendo à natureza, sem julgamentos nem rancores, com certeza nada disso estaria na sua perna.

Enquanto aquele diálogo se dava no físico, o mundo astral movimentava suas forças no sentido de desfazer as amarras energéticas negativas que haviam se calcificado no tornozelo da mulher, além de socorrer alguns espíritos desencarnados e sofredores que por afinidade a acompanhavam.

- A filha precisa urgentemente tomar uma providência se quer curar a perna.

- Pode me dizer e não importa quanto custa o trabalho, pois eu pago o que for preciso para me livrar da dor.

- Eh eh...sempre a moeda! Não vai haver trabalho nenhum e, mesmo que houvesse, na umbanda não se cobra pela caridade. Aquilo de que a filha precisa não custa nenhum vintém, mas talvez a filha não vá achar tão fácil assim.

- Não importa o que eu tenha de fazer, preciso me livrar da dor.

- Só precisa perdoar quem lhe causou a dor.

- Ah, mas a criatura já morreu e eu tenho medo dessas coisas de espírito...

- Morreu na carne, filha. Continua viva no mundo espiritual e sofrendo ainda pela mágoa e também pela culpa.

- Então, como vou pedir perdão para o espírito de um morto?

- Da mesma forma como pediria para o espírito de um vivo. Simplesmente com o coração.

- Eu não sei como fazer isso.

Pegando nas mãos da mulher, o bondoso preto velho envolveu-a em sua aura de amor e, encostando sua testa na dela, colocou em equilibrio todos os seus centros de força [chakras] que estavam em total desalinho, acessando, assim, suas emoções represadas e endurecidas pelos longos anos de mágoa e sofrimento. A princípio, as lágrimas desciam de seus olhos molhando as mãos do médium que dava passividade à entidade; depois, já mais relaxada, a mulher deixou brotar um convulsivo pranto que estremecia todo seu corpo, fazendo-a soluçar.

- Isso, filha, chora. Deixa esse pranto represado sair aí de dentro e limpar essa tranqueira toda que você esconde no peito. Lave a sua alma com as lágrimas do arrependimento.

Pela catarse do choro, a mulher possibilitou que seu corpo astral afrouxasse os cordões energéticos que a ligavam àquele ser de forma negativa, como também possibilitou que se desgrudassem todas aquelas energias densas, quase materializadas pelo tempo que as mantinha consigo.

- Esse preto vai pedir à filha que agora pense no Criador e no Seu Filho Jesus e reze junto comigo aquela oração que Ele nos ensinou quando estava na Terra. Mas peço que pense muito bem em cada palavra da oração.

E, rezando o Pai Nosso, a mulher continuava deixando que as lágrimas lavassem sua alma. Quando o preto velho chegou na frase "perdoai as nossas ofensas, assim como nós perdoamos aos nossos devedores", fê-la repetir três vezes. Ela compreendeu o recado e, ajoelhando-se ao final da oração, citou o nome da antiga rival, pedindo perdão e perdoando o seu espírito.

Nesse momento irradiou-se no ambiente astral uma enorme luz ao redor daquele espírito arrependido que, através do amor e da sabedoria do preto velho, havia sido tocado no mais fundo de seu coração.

Ao seu lado, acordava de um longo sono o espírito da moça a quem havia prejudicado no passado e que, beneficiada pela luz do perdão, recebia energias necessárias para ser agora levada a um hospital do mundo espiritual.

Desligavam-se ali, naquele momento, os laços de ódio que perduraram por longos anos nesta encarnação, mas que já eram trazidos de outros tempos.

Após a mulher se retirar já sem a dor na perna e com a felicidade estampada em seu rosto. Nhô Benedito chamou o camboninho, colocou mais um pouco de fumo no cachimbo, defumou o menino e, batendo o pé no chão no embalo dos atabaques, falou:

- As dores do mundo ainda existem porque os filhos da terra insistem em achar que a vida é uma disputa. Em vez de se verem como irmãos, vêem-se como concorrentes. E, perdendo ou ganhando, estão sempre se magoando e arrumando inimizades que levam junto para o caixão. Quanto peso desnecessário para o espírito carregar no além! Revidar o mal é se atrelar a ele. Perdoar é libertar-se.

- Por que o camboninho chora?

- Nhô Benedito, estou com remorso pois hoje mesmo briguei com meu pai porque acho que ele gosta mais do meu irmão do que de mim e estava sentindo muita raiva dele.

- Eh, eh zi fio...vem cá rezar o Pai Nosso junto com o nego véio e esquece a raiva, pois seu coraçãozinho é muito pequeno pra guardar mágoa dentro dele.

Está iluminada a nossa banda

Está cheio de flores no Congá

Pai Benedito, ele vê tudo o que eu faço

Pai Benedito, ilumine os caminhos por onde eu passo.

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